// Miguel Jesusentre uma verdade e a outra está a dúvida
Não tenhas medo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas medo! Deixa-a ir até à loucura! Ajuda-a a ir até à loucura. Vai tu também, pessoalmente, com a tua cabeça até à loucura!
E se a luz do sol brilhasse durante vários dias seguidos, em dias contínuos com oscilações mínimas, prosseguindo de dia e de noite, ou melhor, de dia e de dia e de dia? Esqueceríamos nós as várias tonalidades que atravessam normalmente o céu ao longo das horas? Deixaríamos de compreender quão reveladora pode ser a noite? Caminharíamos para o culto de um obscurantismo luminoso de quem aos poucos perdeu a capacidade de sonhar? Até quando conseguiríamos erguer nossos Olhos de Gigante, experimentando ver o que não existe realmente, ousando dizer que a realidade nos é insuficiente, castradora, diminuta? De dia e de noite todos somos sempre os primeiros censores de nós próprios, agrilhoando vontades, dissipando gestos e amordaçando alguns gritos. Diminuindo o sentido crítico, fazendo das quimeras ilusões, das utopias ingenuidades e dos desejos apetites, aceitando essa estranha realidade que se constitui enquanto ponto de encontro de vários sonhos esquecidos.
Se o sol estivesse a pino há muitos meses, quanta coragem seria necessária para olharmos a nossa própria sombra projectada nas paredes? Conheceríamos o nosso vulto e saberíamos reconhecer-nos? Lembrar-nos-íamos de como as sombras crescem e ultrapassam a nossa dimensão nas horas em que o sol entardece ou em que a lua nasce? Será que acreditaríamos ainda que algo poderá desaparecer quando a luz se apagar e que alguma coisa finalmente poderá aparecer quando a escuridão se acender? Ou, loucos reais cheios de luz por dentro, uma sombra breve bastaria para acordar o nosso sonho e nos lembrar que o sol não deve imperar sobre a escuridão? Saberíamos ainda que sonho e realidade fazem parte de um mesmo equilíbrio interdependente? Sonhando ou não sonhando, todos seguimos divididos, existindo à vez dentro de nós mesmos. Por vezes vemos somente aquilo que está mais perto, ocupados com os afazeres de cada dia, por outras sonhamos com as paisagens e as quimeras mais longínquas, sem conseguirmos distinguir os contornos que nos rodeiam. Por vezes não sabemos sonhar senão a vida, por outras não sabemos viver senão o sonho.
Se ao longo de gerações e gerações o sol parasse alto, quente, sufocante? Se a sua luz nos cegasse, qual longo período de trevas, e a noite não fosse senão um mito escuro? Teríamos ainda memória de como frente ao sol rasante o nosso delírio se costumava erguer maior que tudo o que é visível? Quando desejássemos fantasiar, partir para o desconhecido, habitar um mundo desvairado e delirante, saberíamos por onde começar? Saberíamos ainda da proximidade que inventar tem de imaginar e imaginar de idealizar? Tanto partindo como ficando, todos sonhamos outras vidas, outras terras, outros tempos. E só as verdades inquebráveis, como um sol pequeno, dourado, poderoso e inquestionável, nos fazem desistir antes mesmo de começar, transformando os sonhos em miragens. Pelo contrário, aceitar o jogo da ilusão, criar, não é mais que duvidar, aceitar e acarinhar a dúvida, continuamente. Acreditando sempre. Alargando os nossos horizontes. Não nos tornando imóveis pela hesitação ou pelo medo mas deixando-nos sim num exercício de interrogação ininterrupto que luta contra o nosso próprio conformismo. Nesses momentos de dúvida saberíamos então exactamente o que estamos a dizer. E certamente lembraríamos as palavras do Mestre da Simplicidade: "muito mais difícil do que responder é perguntar”.
Miguel Jesus, dez de Março de dois mil e treze |